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06 julho, 2017

É morno o pôr-do-sol



Vosso sonho fechou as janelas, florido,
Deixa a minha alma dar às noites seus gemidos (?)

É morno o pôr-do-sol no cerne dos queixumes,
Qual jato de água curvo ao vento, é todo ocioso,
Em mim, o entardecer, fingido e vagaroso,
Brota, descendo sobre os reflexos negrumes.

Aos poucos, tua voz ocupa as sonolências,
Ignotos lapsos entre os átomos da hora,
E sem sabermos de onde alguém, baixinho, chora,
Os ramos em torpor ruminam só demências.

Qual caixa de marfim se fecha todo ser,
Qual folha morta cai enfim todo momento,
Logo não terei mais regato onde beber
O vinho que me faz voar em pensamento.

E, bruscamente, o sopro amornecido deixa
Mossas de sonho sobre as esperas do instante.
Nós choraremos dentro em breve. E as minhas queixas,
Quais som que morre no ar, estão agonizantes.

Como sempre, tardou, irmã, tardou demais.
Pois o vento me ergueu o trigo entre as quimeras
Senti meu coração pulsante e lasso de ais.
Minguou a arte da queixa, à minha breve espera.

Sem calçados, pisais, com rara lucidez,
No porto. Sorri: é o epíteto que, exato,
Deus vos encontrará ao corpo em acidez,
No paço consagrado ao nosso desbarato.

Lembro-me. Junto ao rio escuro e negro, à margem.
Com os cisnes buscando olhares doutras gentes.
Nós agíamos como apóstolos plangentes
Que perderam a fé nas vesperais miragens.

Estáveis totalmente à sombra. E aquele lasso
Órgão chorava atrás do quadro interrompido.
Nós, à sombra em que Deus ficou emudecido,
Face a face, e o rumor da fuga de alguns passos

Rumo à morte, e na sombra, a perder-se no espaço.



Fernando Pessoa 

Tradução de Renata Cordeiro

Nota da tradutora: Fernando Pessoa escreveu este poema em francês poucos dias antes de morrer.



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