Há cerca de quarenta
anos, eu fazia uma longa viagem a pé em altitudes absolutamente
desconhecidas pelos turistas, numa região antiga. Na época em que se
compreendeu minha longa caminhada por esta região desértica, nada crescia por
lá exceto alfazema selvagem. Era uma terra deserta, árida e monótona.
Após três dias de caminhada, encontrava-me no meio de uma desolação sem
igual. Acampava ao lado do esqueleto de uma aldeia abandonada. Não tinha água
desde a véspera e eu necessitava encontrá-la. Aquelas casas
aglomeradas como um velho ninho de vespas, embora em ruínas, levaram-me
a pensar que talvez lá tivesse havido em tempos passados uma fonte ou um
poço. Havia de facto uma fonte, mas estava seca.
Tive de levantar o acampamento. Ao fim de cinco horas de caminhada, eu
ainda não tinha encontrado água, e nada me dava esperanças de poder vir
a encontrá-la. Por todos os lados a mesma secura, as mesmas plantas
lenhosas. De repente vi ao longe uma pequena silhueta negra. Fosse o que
fosse; dirigi-me para ela. Era um pastor. Umas trinta ovelhas, deitadas sobre
a terra escaldante, descansavam perto dele.
Ele deu-me de beber e, um pouco mais tarde, conduziu-me à sua cabana
que se situava numa ondulação do planalto. Ele extraía a sua água, uma
água excelente, de um furo natural muito profundo, ao lado da cabana.
Esse homem falava pouco. Isto é próprio das pessoas solitárias, mas
parecia confiante e seguro de si.
Sua cabana estava arrumada, a louça lavada, o chão varrido; ao
lume fervia uma panela de sopa. Reparei então que ele estava barbeado, que
todos os seus botões estavam bem cosidos, que a sua roupa estava remendada
com aquele cuidado minucioso que torna os remendos invisíveis.
Ele partilhou sua sopa comigo e, quando lhe ofereci meu tabaco, disse-me
que não fumava. O seu cão, silencioso como ele, era amigável, mas não
submisso.
Imediatamente se tornou claro, por um acordo tácito, que eu passaria
a noite ali. A aldeia mais próxima ficava a mais de um dia de
caminhada. E, além disso, eu conhecia perfeitamente o carácter das aldeias
daquela região. Umas quatro ou cinco, dispersas pelos flancos das alturas, nas
matas de carvalhos brancos, longe umas das outras, na extremidade de caminhos
por onde podiam passar carruagens. São habitadas por lenhadores que fazem
carvão de madeira. Suas vidas eram pobres. As famílias, apertadas em pequenos
espaços, nesse clima que é duma rudeza excessiva, fecham-se no seu
egoísmo, numa ambição irracional, desejando continuamente escapar-se deste
lugar.
Havia concorrência em tudo, desde a venda do carvão até o banco
da igreja. Sobre tudo isso, um vento que irrita os nervos sem cessar. Há
epidemias de suicídios e numerosos casos de loucuras, quase sempre
mortíferas.
O pastor, que não fumava, foi buscar um saquinho e despejou sobre
a mesa um monte de bolotas. Pôs-se a examinar com muita atenção, uma
após outra, separando as boas das más. Eu fumava o meu cachimbo.
Ofereci-lhe ajuda, mas ele disse-me que era assunto seu. Quando tinha do lado
das boas bolotas um monte bastante grande, contou-as em grupos de dez. Ao fazer
isso, eliminava ainda os frutos pequenos ou os que estavam ligeiramente
fendidos, pois os observava de muito perto. Quando, enfim, juntou diante de si
cem bolotas perfeitas, parou e fomos dormir.
O convívio com este homem dava uma grande paz. No dia seguinte pedi-lhe
autorização para passar o dia todo com ele. Ele considerou isso natural
ou, mais exatamente, deu-me a impressão de que nada poderia incomodá-lo.
Ele fez sair o rebanho e levou-o para a pastagem. Antes de
partir, molhou num balde de água o pequeno saco onde tinha posto as
bolotas cuidadosamente escolhidas e contadas.
Reparei que em vez do cajado ele levava um varão de ferro grosso como
o dedo polegar e com cerca de um metro e meio de comprimento.
Ele deixou o pequeno rebanho à guarda do cão e subiu em
direção ao local onde eu me encontrava. Ele convidou-me a acompanhá-lo
caso não tivesse nada de melhor para fazer. Ele ia a uns duzentos metros
para cima.
Chegando ao local onde queria, começou a espetar o varão de ferro
na terra, isto fazia um pequeno buraco no qual metia uma bolota, depois tapava
o buraco de novo. Ele plantava carvalhos. Perguntei-lhe se a terra
lhe pertencia. Ele respondeu que não. Sabia de quem era? Ele não sabia. Supunha
que era uma terra comunal ou talvez fosse de alguém que não se importava com
ela. Ele não se preocupava nada por não conhecer os proprietários. Plantou
assim as suas cem bolotas com um cuidado extremo.
Depois do meio-dia, ele começou a selecionar as suas sementes. Devo
ter insistido muito nas minhas perguntas, pois ele ia respondendo. Havia três
anos que ele plantava árvores naquela solidão. Já tinha plantado cem mil.
Dessas cem mil, vinte mil tinham nascido. Dessas vinte mil, ele contava perder
metade por causa dos animais roedores ou de tudo o que é impossível.
Restavam dez mil carvalhos que iam crescer naquele local onde antes não havia
nada.
Nesse momento interroguei-me sobre a idade daquele homem. Tinha
visivelmente mais de cinquenta anos. Cinquenta e cinco, disse ele.
Chamava-se Elzéard Bouffier. Tinha tido uma fazenda nas planícies, onde viveu
parte de sua vida. Tinha perdido sua esposa e seu único filho,
e então ele retirara-se para a solidão onde lhe dava prazer viver
lentamente com as suas ovelhas e o seu cão. Ele tinha concluído que
aquele país morria por falta de árvores. Acrescentou que, não tendo ocupações
muito importantes, ele resolveu remediar a situação.
Disse-lhe que em poucos anos esses dez mil carvalhos estariam magníficos.
Ele respondeu-me muito simplesmente que, se Deus lhe desse vida, em trinta anos
ele teria semeado muitas outras árvores que esses dez mil seriam uma gota de
água no oceano.
Aliás, ele já estudava a reprodução dos carvalhos e tinha perto
de sua cabana um viveiro de amêndoas de faias. Aquelas que ele tinha protegido
dos seus animais por uma cerca de tela estavam belíssimas. Ele também estava
considerando bétulas para o fundo do vale onde, disse-me ele, que
a humidade estava adormecida a poucos metros da superfície do solo.
Separámo-nos no dia seguinte.
No ano seguinte começou a guerra de 14, na qual estive durante cinco
anos. Eu tinha esquecido todo o acontecimento. Um soldado de infantaria
não podia refletir sobre árvores.
Saído da guerra, encontrava-me com um grande desejo de respirar um pouco de
ar puro. Foi sem qualquer outra ideia pré-concebida que retomei o caminho
para aquele país deserto. A terra não tinha mudado, contudo, para além da
aldeia morta, vislumbrei ao longe uma espécie de névoa cinza que cobria as
colinas como um tapete. Eu tinha recomeçado a pensar naquele pastor, que
plantava árvores. “Dez mil carvalhos”, eu refletia, “ocupam de fato um grande
espaço”.
Tinha visto muita gente morrer durante cinco anos para não imaginar
facilmente a morte de Elzéard Bouffier.
Ele não tinha morrido. De fato, estava mesmo muito vivo. Ele tinha mudado
de profissão. Agora possuía apenas quatro ovelhas mas, em compensação, tinha
uma centena de colmeias. Tinha-se livrado das ovelhas, porque elas colocavam em
perigo a plantação de árvores. A guerra não tinha perturbado
a todos. Ele tinha continuado imperturbavelmente com a sua plantação.
Os carvalhos de 1910 tinham agora dez anos e estavam mais altos do que
eu e do que ele. O espetáculo era impressionante. Como ele não
falava, passamos o dia todo em silêncio, andando pela floresta. Isto
estava em três talhões, onze quilómetros de comprimento, no seu ponto mais
longo, e três quilómetros de largura. Eu me lembrava que aquilo tudo tinha
saído das suas mãos e da alma daquele homem, sem meios técnicos. Eu estava
literalmente sem palavras.
As faias que me chegavam aos ombros, espalhadas a perder de vista. Os
carvalhos estavam vigorosos e tinham ultrapassado a idade em que
estavam à mercê dos roedores para destruir a obra criada, estavam
agora em pé uma ao lado da outra. O pastor me mostrou admiráveis
bosquezinhos de bétulas que datavam de cinco anos atrás. Tinha-as feito ocupar
todos os vales onde ele suspeitava, com razão, que haveria humidade quase na
superfície. Estavam tenras como jovens garotas e muito decididas.
A criação parecia, aliás, realizar-se por uma reação em cadeia. Ele não se
preocupava com isso, mas prosseguia obstinadamente a sua simples tarefa.
Mas ao descer novamente pela aldeia, vi correr água em riachos que, na memória
viva, sempre tinham estados secos. Foi o mais formidável renascimento, que
me foi dado presenciar.
O vento também dispersava certas sementes. Ao mesmo tempo em que reapareceu
a água, reapareciam salgueiros, prados, jardins, flores e uma certa
alegria de viver.
Mas a transformação acontecia tão lentamente que entrava nos hábitos
sem provocar espanto. Os caçadores, que subiam às alturas na perseguição de
lebres ou de javalis, tinham na verdade constatado a população das
pequenas árvores, mas tinham-na atribuído aos caprichos naturais da terra. Por
isso ninguém tocava na obra daquele homem. Quem, entre os aldeões ou os
administradores, teria suspeitado que qualquer um poderia mostrar essa
obstinação na realização deste magnífico ato de generosidade?
A partir de 1920 nunca fiquei mais de um ano sem visitar Elzéard Bouffier.
Nunca o vi desfalecer nem hesitar, apesar de que só Deus sabe, que sua
vida não foi fácil. Eu nunca disse nada sobe suas decepções, mas você pode
facilmente imaginar que deve ter sido necessário vencer a adversidade. Ele
tinha, durante um ano, plantado mais de dez mil áceres vermelhos. Todos tinham
morrido. No ano seguinte; desistiu dos áceres para retomar as faias, as quais
resultavam ainda melhor que os carvalhos.
Para ter uma ideia mais ou menos exata deste carácter excepcional,
é preciso não esquecer que ele trabalhava numa solidão total, tão total
que, no fim de sua vida, ele tinha perdido o hábito de falar. Ou será que
não via necessidade?
Em 1933 ele recebeu a visita de um guarda florestal deslumbrado, que
ordenou-lhe que não fizesse qualquer fogueira fora, com medo de pôr em perigo
aquela floresta “natural”. Nessa época ele ia plantar faias a doze
quilómetros da sua casa. Para evitar o ir e vir, porque tinha então
setenta e cinco anos, tencionava construir uma cabana de pedra nos
próprios locais de suas plantações. O que ele fez no ano que se seguiu.
Em 1935, uma verdadeira delegação administrativa foi examinar
a “floresta natural”. Desejavam fazer qualquer coisa e, felizmente não se
fez nada, a não ser a única coisa útil: colocar a floresta sob
a guarda do Estado e proibir que lá se fosse fazer carvão. Pois era
impossível não ficar subjugado pela beleza daquelas jovens árvores em plena
saúde.
Eu tinha um amigo entre os chefes florestais da delegação. Expliquei-lhe
o mistério. Nós fomos à procura de Élzeard Bouffier. Encontrámo-lo em
pleno trabalho a vinte quilómetros do local onde tinha sido feita
a inspeção.
Antes de partir, meu amigo fez apenas uma breve sugestão acerca de certas
espécies às quais o terreno dali parecia ser favorável. Mas ele não
insistiu. “Pela simples razão”, disse-me depois, que, “aquele homem sabe mais
disso do que eu”. Depois de uma hora de nossa caminhada, ele acrescentou: “Sabe
muito mais disso do que todo mundo e ele encontrou uma ótima maneira de
ser feliz!”
Foi graças a esse chefe que, não somente a floresta, mas
a felicidade daquele homem foram protegidas. Ele nomeou três guardas
florestais para essa proteção e amedrontou-os de tal maneira que ficaram
insensíveis a quaisquer “garrafas de vinho” que os carvoeiros pudessem
oferecer-lhes como gorjeta.
A floresta não correu nenhum risco grave, exceto durante a guerra em
1939. Os automóveis moviam-se a gasogénio, a madeira nunca era
suficiente. Começaram a fazer cortes nos carvalhos de 1910. Mas essas
árvores estavam tão afastadas das estradas que o empreendimento se revelou
muito ruim do ponto de vista financeiro e foi abandonado. O pastor
não tinha visto nada. Estava a trinta quilómetros, continuando calmamente
o seu labor, ignorando a guerra de 39 como tinha ignorado a de
14.
Eu vi Elzéard Bouffier pela última vez em 1945. Ele tinha então oitenta
e sete anos. Eu tinha retomado a rota do deserto, mas agora, estava
funcionando um autocarro lá. Atribuí a esse meio de transporte o fato de
não estar reconhecendo os lugares dos meus primeiros passeios. Parecia-me
também que o itinerário me fazia passar por lugares novos. Precisei
perguntar o nome de uma aldeia para concluir que estava mesmo nessa região
dantes em ruína e desolação.
Em 1913, esta aldeia de dez a doze casas tinha três habitantes. Eram
selvagens, detestavam-se, viviam da caça com armadilhas. As urtigas devoravam
as casas abandonadas.
Tudo estava mudado, até o ar. No lugar das rajadas secas
e brutais que dantes me tinham acolhido, soprava uma brisa suave carregada
de doces odores. Um ruído semelhante ao da água vinha das alturas. Era
o vento nas árvores. Enfim, o maior espanto foi ouvir
o verdadeiro som da água correndo para um tanque. Eu vi que tinham feito
uma fonte, que a água era abundante e, o que mais me tocou, tinham
plantado ao pé da fonte uma tília que podia ter já uns quatro anos, já grossa,
símbolo incontestável duma ressurreição.
O lugarejo tinha agora vinte e oito habitantes, entre os quais quatro
jovens casais. As casas novas, reboco novo, estavam rodeadas de hortas onde
cresciam, misturados mas alinhados, legumes e flores, couves
e roseiras, peras e flores de coelho, aipos e anémonas. Era um
lugar onde se desejaria viver.
A partir daí eu continuei o meu caminho a pé. Nos flancos
aplanados da montanha, eu via pequenos campos de cevada e centeio, no
fundo dos vales estreitos as terras foram virando pasto verde.
As velhas nascentes alimentadas pelas chuvas e pelas neves que as
florestas retêm, recomeçaram a correr. Os riachos foram canalizados. Ao
lado de cada fazenda, em meio a bosques de plátanos, os tanques das fontes
transbordam sobre tapetes de hortelã fresca.
As aldeias reconstruíram-se pouco a pouco. Uma população vinda das
planícies, onde a terra é cara, fixara-se na região trazendo
juventude, movimento e espírito de aventura. Encontravam-se pelos caminhos
homens e mulheres bem alimentados, meninos e meninas sorrindo. Mais
de dez mil pessoas deviam a sua felicidade a Elzéard Bouffier.
Quando penso que um único homem, confiando em seus próprios recursos
físicos e morais, fora capaz de transformar um deserto nesta terra de
Canaã, estou convencido de que, apesar de tudo, a condição humana
é verdadeiramente admirável. Mas quando considero a grandeza de alma
e a dedicação necessárias para obter esta transformação, sinto um
imenso respeito por esse velho camponês sem cultura.
Adaptado de Jean Giono
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